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ENTREVISTA: Nuno Catorze: Ficar em casa é a solução (C/VÍDEO)

1/02/2021 às 16:02

Nota da Redação: Ainda antes da terceira vaga Nuno Catorze, diretor da Unidade de Cuidados Intensivos da Unidade de Abrantes do Centro Hospitalar do Médio Tejo, concedeu uma entrevista ao Jornal de Abrantes que fez a manchete da edição de dezembro. Republicamos esta entrevista na íntegra porque continua atual, apesar de terem passado dois meses. Aliás, continua mais atual que nunca. A mensagem dos profissionais da saúde da linha da frente continua a ser a mesma: Fiquem em Casa.

(Publicação original a 04-12-2020)

Nuno Catorze, médico há 28 anos, intensivista há 20, é o diretor da Unidade de Cuidados Intensivos do Centro Hospitalar do Médio Tejo (CHMT). Aceitou dar esta entrevista numa das salas do piso 6 do Hospital de Abrantes. É este o seu “reino” onde se concede o suporte de vida aos doentes que ali entram. A ala Covid está cada vez mais cheia e 50% destes doentes não são do Médio Tejo, chegam de outros pontos do país. 
A pandemia obrigou a muitas mudanças e adaptações dos serviços, da urgência, das enfermarias e, acima de tudo, das vidas dos profissionais. O médico diz que desde março não tem vida social, passou a ser fã de compras online e teme que possa ter de aplicar a medicina de catástrofe.

Entrevista por Jerónimo Belo Jorge

Fotos de Taras Dudnyk

Quando se começou a falar deste novo coronavírus e em pandemia global, houve a expectativa de que podíamos passar por isto de forma ligeira ou percebeu-se logo que isto ia ser nos termos que estamos a ter?
Não, aquilo que se entendeu foi que a evolução seria esta. À semelhança do que estava a acontecer nos outros países europeus, nomeadamente com os nossos vizinhos espanhóis que de facto tiveram uma sobrelotação e uma sobrecarga de trabalho dentro do Serviço Nacional de Saúde, já estávamos a espera que isto viesse a acontecer. Não aconteceu na primeira fase porque tivemos uma reação muito rápida e um confinamento muito adequado.

Quando começaram a surgir os novos casos e as primeiras reuniões para perceber que linhas é que iriam ser traçadas, foi convidado para integrar a “Task Force” Nacional. Nessa altura, qual é que foi o objetivo? Definir a forma como se iria “tratar” a pandemia?
Não, o “Task Force” tem um papel essencialmente de consultadoria da ARS e do Ministério, de forma à concertação da resposta da medicina intensiva junto do Serviço Nacional de Saúde. Porque nós já sabíamos, à partida, que Portugal em termos de número de camas por cada 100 mil habitantes era dos países menos fortes e tínhamos os números menos adequados. Foi uma tentativa e é uma tentativa atual, de se tentar modelar a resposta da medicina intensiva musculando-a com médicos não intensivistas e com camas atribuídas a medicina intensiva e pontual até fora dos locais que eram clássicos e conservadores e essa é uma resposta que ainda hoje está a ser dada. Porque todos os dias ou todas as semanas, os hospitais dos SNS abrem camas dedicadas a área Covid com médicos não de medicina intensiva, mas com supervisão dos mesmos.

Ganhámos um adereço e ganhámos novos hábitos, que foi perder os outros”

A primeira vaga correu relativamente bem, houve logo a perspetiva de que uma segunda vaga ia ser muito pior como está a ser?
Sim, a resposta é sim. Já se sabia que haveria uma segunda vaga, aliás porque é histórico, nós conseguimos perceber pela a história da própria epidemia, nomeadamente, naquilo que se passa nos países onde ela apareceu, na China, e posteriormente em Itália que nunca desapareceu e é óbvio que vamos esperar uma terceira vaga. Nós após períodos de confinamento vamos ter períodos de desconfinamento e sempre que isso acontece, 15 dias depois, temos a resposta do que nos acontece. Obviamente que as pessoas sentem um fardo pesado com este confinamento e com as limitações, ainda por cima numa época natalícia, é perfeitamente natural que depois se tente aliviar as tensões, as tensões sociais, familiares e económicas que depois vão ter um preço e esse preço vai ser a terceira vaga, mesmo com vacinas.

Que alterações é que foram feitas na Unidade de Abrantes quando se definiu internamente que o Centro Hospitalar iria ter a Unidade de Abrantes como a unidade de referência covid? Que mudanças é que foram operadas nestes tempos, desde fevereiro, março, altura em que começaram a surgir os primeiros casos?
Portanto, em meados de março com a necessidade de reformular planos de contingência internos e de resposta, quer regional, quer nacional, foram definidos alguns planos, nomeadamente circuitos completamente diferentes. Permitiu-nos dividir o hospital, a entrada do hospital e a saída em dois, os doentes negativos e os suspeitos ou positivos e isto implicou uma alteração de espaços quer na urgência, quer nas enfermarias e mesmo na Unidade de Cuidados Intensivos, criando espaços, na altura, para doentes que eram manifestamente negativos e depois mais dois espaços que eram os chamados “espaços cinzentos” que eram os espaços dos doentes que eram suspeitos, porque na altura, os testes demoravam horas a dias a chegar ao nosso conhecimento e depois tínhamos uma área de doentes Covid. Com o passar do tempo e o com o desenvolvimento da capacidade laboratorial, o que acontece é que se mantém os mesmos que cresceram proporcionalmente com a quantidade de doentes, mas divide-se apenas em doentes positivos e doentes não positivos. Em termos de urgência é o que se passa agora, cresceu muito a área de respiratórios, a área de grande suspensão de positivos cresceu, está mais musculada, triplicaram a capacidade de internamento e em termos de cuidados intensivos aconteceu exatamente a mesma coisa. Nós passamos de uma resposta regional de 4,5 camas para praticamente 15 camas por 100 mil habitantes, isso quer dizer que temos uma resposta muito acima da resposta nacional. Obviamente, com a contingência de recursos humanos, se quisermos ocupar as camas todas temos necessidade de parar a atividade programada, mas o que é facto é que as camas existem e as pessoas podem ter acesso a cuidados diferenciados, quer regionalmente, quer em termos nacionais porque todos nós funcionamos em rede e, portanto, a resposta foi esta, foi muscular. Aqui em Abrantes, o sexto piso está todo ele dedicado a medicina intensiva, onde temos duas alas, uma delas é uma ala não Covid e a outra ala é uma ala que tem 23 camas dedicadas à Covid das quais só temos neste momento, funcionais 12 e vamos crescer conforme o nível das expectativas e das necessidades que nos vão sendo postas pela rede e que podemos ir até 16, 23 camas de enfermaria dependendo dos recursos. São 197 camas que são os limites possíveis só para doentes Covid. A Unidade de Abrantes está com quase 200 camas de enfermaria e estamos a falar de 20 a 23 doentes de medicina intensiva. Sabendo que os números não mentem e que sabemos que entre 5 e 7,5% dos doentes que estão em enfermaria acabam por ser referenciados ou vão para os cuidados intensivos, basta fazer contas. Se são 200, facilmente nós vamos ter 50 doentes a serem referenciados e a necessitarem de cuidados intensivos.

"Abrantes está com quase 200 camas de enfermaria e estamos a falar de 20 a 23 doentes de medicina intensiva”

Por vezes há quem fale que as instituições agora só se preocupam muito com a Covid e deixam um bocadinho de lado as outras patologias. Isso tem algum pingo de verdade?
Não, não é uma frase adequada. O que acontece é a preocupação social e dos profissionais que também têm uma família e obviamente, também têm vida para além do hospital que se veem privados nesta altura, por contingência e até por políticas e legislativas, e não podem usufruir da família da mesma forma. Aquilo que se nota é que os doentes Covid são aqueles que de facto sobrecarregam o Sistema Nacional de Saúde. Os doentes não Covid continuam a aparecer, em menor número porque as pessoas têm receio de vir ao hospital, mas são tratados da mesma forma e de facto, o Médio Tejo tem tido a sua atividade programada, com as consultas abertas. Obviamente que tudo tem um limite e a partir de determinado momento em que há que escolher e será uma escolha política ou uma escolha racional, o que parece é que se nesta segunda vaga os doentes são mais jovens e têm maior capacidade de sobrevivência, não os podemos deixar sem cuidados e quando nós pomos isto numa balança não sabemos para que lado se vai virar e é muito difícil fazer decisões ou recomendações sobre a abertura ou não de camas quando do outro lado pode estar alguém que nós conhecemos.

Como é que se diz às pessoas que o hospital é seguro, que devem vir se precisarem?
O vírus não se transmite pelo hospital, o vírus é um vírus social, é vírus de comportamentos e o comportamento que existe dentro do hospital é um comportamento correto com a utilização de equipamentos de proteção, com máscara, com distanciamento social, com a lavagem frequente das mãos e se as pessoas adotarem este comportamento na sua vida diária, o hospital é um dos lugares mais seguros. No universo português, em termos sociais, também há profissionais de saúde infetados, mais no âmbito familiar do que no âmbito profissional. Temos aqui uma grande percentagem de doentes que são covid positivo e de facto o uso de equipamento de proteção individual é elevado e não temos profissionais infetados nesta unidade. Portanto, quer dizer que é seguro e essa é a mensagem que transmite o hospital, este ou qualquer instituição do SNS. Provavelmente é um dos locais mais seguros para as pessoas estarem. O não vir é um erro porque podem protelar situações que são facilmente tratáveis e depois, quando vêm, poderá ser tarde demais. É esse o apelo que eu faço.

Quais são os problemas dos doentes covid quando entram aqui e necessitam dos cuidados intensivos?
O que acontece é que as pessoas quando vêm para os cuidados intensivos é porque precisam de suporte de alguma coisa, suporte ventilatório, suporte cardiocirculatório, suporte gastrointestinal, suporte neurológico porque há vida para além do covid e o covid é uma infeção vírica que provoca um determinado tipo de deterioração, principalmente respiratória, mas que perante pessoas que têm outras doenças crónicas poderá descompensá-las mais facilmente e às vezes são as outras doenças que descompensam e não é o covid. O covid é uma forma de descompensação das doenças crónicas. 80% dos doentes têm de facto uma patologia respiratória aguda derivada da infeção aguda ao vírus. Os outros 20% serão doentes que de facto estão infetados com o vírus, mas que vêm por outras razões.

Os antibióticos previnem algum agravamento da doença covid?
Não, pelo contrário. A utilização de antibióticos deve ser feita de forma racional, consensual e dirigida aos agentes mais prováveis. O vírus, este vírus e qualquer outro vírus existente na nossa natureza não responde aos antibióticos e os antibióticos não previnem a infeção aguda ou mesmo crónica a doenças virais.

Que tratamento é que as pessoas podem fazer, nomeadamente alguém que teste positivo?
É simples. Da mesma forma como se trata uma gripe. Eu ainda sou do tempo em que a minha avó dizia: "avinha-te, abafa-te e abifa-te!" Aqui é exatamente a mesma coisa. Na prática, é confinar-se, ter regras de distanciamento social ainda maiores, estar bem hidratado, se tiver febre, ou dores musculares, utilizar analgésicos como o paracetamol que é o indicado e depois fazer tratamento sintomático. No caso de agravamento com sintomas respiratórios, contactar a Saúde 24 ou vir ao hospital. Não há antibióticos, não há chá, não há lançar as pedras ou os búzios, é apenas tratamento sintomático e manter-se em casa hidratando e comendo de forma saudável.

"Quando nós ditarmos que vai ser necessária a aplicação da "medicina de catástrofe" é porque foram ultrapassadas todas as nossas capacidades”

O que é um médico intensivista ou o que é o intensivismo?
A medicina intensiva é gerida por médicos intensivistas e o intensivismo é um médico que tem uma especialidade, que é capaz de fazer o diagnóstico diferencial de tratamento e suporte à falência de órgãos quer aguda, quer crónicas. Ultrapassando a fase de majoração da doença permitindo que a pessoa possa recuperar. Num pós-operatório, num quadro de infeção grave, num quadro de insuficiência respiratória... é um médico intensivista que neste momento trata disso. A palavra agora está na moda, porém já tem muitos anos. Muitas vezes baralha-se com o emergencista, pessoa que está na emergência. Não, o intensivista é uma especialidade que abarca todo o saber médico, o saber da doença crítica, da doença aguda e da doença agudizada, permitindo suplementar órgãos e sistemas através de tecnologias felizmente existentes e com desenvolvimento praticamente diário porque permite suportar e levar a vida das pessoas com outro tipo de qualidade depois de passar esta fase aguda da doença.

O serviço hospitalar recebeu um equipamento de monitorização de tecnologia de vanguarda único no país que permite antecipar procedimentos em doentes críticos. Já foi utilizado em ambiente de Covid?
Ele está disponível para qualquer paciente que precise, seja positivo ou negativo. Já foi utilizado e já não é o único. Neste momento está disponível, nós não salvaguardamos equipamentos para doentes específicos. Se as pessoas necessitarem é usado com as mesmas regras, independente do tipo de doença ou patologia que tenham.

Em termos daquilo que é a unidade de referência Covid do Médio Tejo, como é que é feita a articulação com o país, sendo que tem doentes em enfermaria e cuidados intensivos, a maior parte de fora da área de abrangência do centro hospitalar ?
50% dos doentes que estão nos cuidados intensivos não são do centro hospitalar, portanto são de fora, a articulação feita é em rede e é feita de três maneiras. Contactos de outros hospitais diretamente connosco; contactos feitos através da Administração Regional de Saúde (ARS) que depois faz circular a necessidade junto dos hospitais que abrangem a necessidade de camas e através de uma comissão chamada de Comissão de Acompanhamento Resposta Nacional de Medicina Intensiva. E tem montada uma rede de informação centrada nas direções de serviço e nas informações que são disponibilizadas duas vezes por dia acerca das vagas existentes em intensivos. Articulam entre si as vagas e orientam os doentes. As transferências são feitas por esta via. São transferências mais seguras, chamadas de transferências profiláticas, porque aliviam mais os hospitais que estão nas zonas de maior contágio para zonas de menor contágio.

Como tem sido a vida do cidadão Nuno?
Casa, trabalho. Trabalho, casa... Tento ter a vida mais saudável possível junto dos meus filhos e da família. A vida social acabou. Eu tornei-me um fã de compras online, é a única coisa. Eu bem gostava de poder ir buscar coisas pessoalmente, mas confesso que se as pessoas não entendem a bem, vão entender nos próximos tempos e vai sair do corpo de cada um.

O que mais lhe perguntam de abril para cá ?
Como é que vão as coisas?... As pessoas não fazem a mínima noção, mas também não lhes podemos dizer. Mesmo pessoas ligadas à saúde, dentro de outras áreas de trabalho, quando nos questionam como estão as coisas, não podemos dizer que estão más nem podemos dizer que estão boas. As respostas têm de ser evasivas.

A pandemia, tal como está (final de novembro) assusta?
A pandemia assusta mais pela mudança que ocasionou. Desde março para cá as nossas vidas mudaram. Ganhámos um adereço (máscara), ganhámos novos hábitos que foi perder os outros. Ou seja, não podemos ter encontros de família, os fins de semana são passados de forma quase solitária, férias não houve, andamos na rua sempre a olhar para ver se o próximo tem máscara ou não tem. Olhamos por cima do ombro para "tentar" ver se o outro está infetado ou não.
Isto trouxe uma nova era. Uma nova vida que a geração dos nossos filhos vai pagar um preço social, um preço familiar enorme. Quanto à doença não. Se nós tivermos os cuidados, se tivermos em conta todos os aconselhamentos ditados pelas autoridades de saúde, a doença não assusta ninguém. Agora as mudanças inerentes à pandemia, isso sim, não sei onde vamos parar.

"A pandemia assusta mais pela mudança que ocasionou”

E como é que se lida diariamente com a possibilidade (real) de poder ter de aplicar a medicina de catástrofe [quem deixar morrer e de quem tentar salvar]?
Quando nós ditarmos que vai ser necessária a aplicação da "medicina de catástrofe" é porque foram ultrapassadas todas as nossas capacidades. Eu espero que não tenhamos de chegar a esse ponto. Mas temo que possamos chegar porque a sua praticabilidade terá que ser acompanhada com uma frieza muito maior e uma grande compreensão social porque (a acontecer) o que iremos fazer será gerir a catástrofe. Há uma probabilidade, mesmo que pouca, que possamos ter de aplicar em alguns lugares do país, se não é que não tenha sido já aplicada.

Qual a mensagem do Coordenador de Abrantes para as pessoas?

Qualquer sintoma gripal que possa resultar na alteração do olfato, alterações na visão, dores musculares, cansaço e falta de ar são os mais comuns desta doença. É uma simples gripe como nós dizemos quando estamos engripados. E aquilo que se deve fazer é nessa altura fazer medicação sintomática e contactar as autoridades através da linha de saúde 24 e tentar não manter contacto com outras pessoas enquanto não tiver a certeza ou aconselhamento das autoridades sanitárias. Enquanto não tiver a certeza que não está infetado, mesmo junto dos seus, deve manter o equipamento de proteção individual como a máscara e o distanciamento. Porque da mesma maneira que levamos a doença para fora, ela também nos entra em casa.

Este vai ser um Natal diferente?
Este não vai ser um Natal.

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