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CRÓNICA: «A falsidade e a dignidade humanas» por Luís Barbosa

23/10/2020 às 00:00
Luis Barbosa

SALPICOS DE CULTURA...


“A falsidade e a dignidade humanas”


É com alguma admiração que vou constatando o tipo de informação que me chega tanto por documentos escritos, como pela televisão, e não é sem refletir mais cautelosamente que acompanho alguns dos escritos e programas onde, comentadores variados, vão tecendo considerações sobre a forma atual segundo a qual nós, seres humanos, nos vamos relacionando.

Penso poder afirmar que pertenço a uma geração que se habituou a ter da palavra dita grande respeito, e a aceitar que aquilo que fosse escrito valia mesmo. Claro que com o andar da vida fui constatando que, tanto o primeiro princípio, como o segundo, nem sempre valiam como coisas a respeitar e, pouco a pouco, fui assistindo a uma clara subversão destas duas âncoras civilizacionais.
Confesso-me até ingénuo por ter vastas vezes pensado que estas novas formas de estar tinham os dias contados, já que sempre pensei, e penso, que viver com base na mentira e falsidade é estar de costas voltadas para a própria humanidade. Porém, nunca julguei que o homem viesse a cair no caldeirão destas duas formas doentias de se relacionar.

É, pois, com alguma preocupação que leio escritos, e assisto a programas onde em causa está não contar o facto tal como ele aconteceu, mas mais do que isso, à preocupação de demonstrar que o que foi escrita publicada, ou documentário exibido, mais não é que uma autêntica mentira. Contudo, a minha perplexidade vem aumentando quando, em vários textos plasmados em revistas ou jornais, ou mesmo em programas televisivos, ouço não apenas dizer que existem organizações montadas para produzir notícias falsas e que existem governos, bem responsáveis pelas coisas do mundo, que recorrem às mesmas para conseguir atingir os seus intentos.

Devo confessar que este atual contexto não é coisa que me agrade, até porque, talvez ingenuamente, fui dos que acreditei em 1974, que com o mudar do sistema político, iríamos viver no país um clima de liberdade, fundado na verdade e na transparência que nos haviam sido tiradas durante quase cinquenta anos.

Porém, as coisas são como são, e com algum espanto, assisti mesmo há pouco tempo, num programa televisivo, no qual os seus intervenientes não só se queixavam dos fenómenos anteriores, como se diziam perplexos perante a forma como um vasto grupo de pessoas aderia com facilidade a notícias que, era impossível, não as soubessem antecipadamente falsas, concluindo até que tal significava um enorme retrocesso civilizacional. Fiquei a pensar. Mas, de repente, lembrei-me então de algumas ideias que havia lido dias antes numa obra titulada “O Crepúsculo da Democracia”, com o subtítulo “O Fracasso da Política e o Apelo Sedutor ao Autoritarismo”, da autoria de Anne Applebaum, editada ainda este ano pela Bertrand Editora e na qual, a páginas 107/8 a autora diz. Passo a citar:

“Há muito tempo que a mudança política – as variações no estado de espírito da população, as viragens acentuadas na perceção das multidões, o colapso da fidelidade partidária – tem sido tema de grande interesse para os académicos e para todo o tipo de intelectuais.” ]…[“Numa videochamada intermitente entre a Austrália e a Polónia, Stenner fez-me (à autora) perceber que a <predisposição autoritária> que ela identifica não é exatamente a mesma coisa que uma mentalidade fechada.” […]”de facto assemelha-se mais a uma mentalidade simplista: as pessoas são amiúde atraídas pelas ideias autoritárias porque a complexidade as incomoda. Não gostam de divisões. Preferem a unidade. Uma súbita investida de diversidade – diversidade de opiniões, diversidade de experiências – deixa-as irritadas. Por isso, procuram soluções numa nova linguagem política que as faça sentir mais confortáveis e mais seguras].

Bem, que a mentalidade goste do simplismo, ainda vá que não vá, agora que vá transformando o que sai da boca, ou o que se escreve em jornais e revistas, como qualquer coisa que não tenha o peso da ética, da honra, e o carimbo da dignidade humana, custa-me a aceitar. Defeito meu? Sinceramente não creio. Por isso espero que, mesmo assim, seja qual for o andar da nossa carruagem civilizacional, continue a ter quem queira fazer parte da minha equipa.

Despeço-me com amizade,
Luís Barbosa*

*Investigador em psicologia e ciências da educação
SALPICOS DE CULTURA, uma parceria com a Associação Internacional de Estudos Sobre a Mente e o Pensamento (AIEMP)

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