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CRÓNICA: SALPICOS DE CULTURA «Mudam-se os tempos permanecem os valores»

4/05/2020 às 00:00
Luís Barbosa

Confesso que agora, na situação de aposentado do Ensino Público, e longe das minhas atribuições de responsável pela formação de Educadores de Infância e Professores do Ensino Básico, práticas que desenvolvi durante muitos anos nas universidades e escolas superiores portuguesas, não me sinto mesmo assim tão afastado das coisas da Educação.

É facto que neste momento estou mais ligado à problemática de trabalho com cidadãos institucionalizados em lares de idosos e frequentadores de universidades seniores mas, mesmo assim, tanto a problemática do estar na escola a que os meus netos vão estando sujeitos, como as conversas que amigos gostam de ter comigo sobre as questões da educação, fazem com que vá tentando não me afastar das vicissitudes que a problemática da vida atual a todos nós propõe.

Claro que as mudanças de modos de viver têm sido muito significativas e as formas de funcionamento das instituições educativas são hoje completamente diferentes das que existiam  nos anos 80. Porém, não raro dou comigo a pensar se, pese embora estejam a ocorrer tão profundas mudanças na forma de estar dos cidadãos, estas se afastam muito das de outrora.

Com frequência ouço dizer que estamos numa fase caraterizada por uma mudança de paradigma social. É afirmação que aceito. Porém, também não raro ouço aqui e ali dizer que o passado é coisa em que não interessa pensar, e esta é já afirmação com a qual não concordo. Sobretudo quando ao ouvir esta afirmação fico com a ideia de que quem a profere fá-lo sem saber se outrora, outros indivíduos terão ou não sido confrontados com mutações tão ou mais complexas como aquelas a que agora nos sentimos sujeitos.

Reconheço que tenho um hábito que para muitos pode parecer até uma certa bizarria, ele traduz-se na atitude de procurar iluminar as minhas dúvidas recorrendo àquilo que os gregos fizeram quando tiveram a necessidade de olhar para o próprio homem e saber o que de facto este ser vindo ao universo era em concreto.

Agora vou fazer o mesmo exercício, mas acompanhado por alguém que penso ter idade diferente da minha, e que provavelmente terá exercido atividade nas coisas da Educação até momentos mais perto da data atual. Vou fazê-lo recorrendo a uma obra que esta pessoa publicou em 2005, editada pelo Ministério da Educação Nacional, na coleção Desenvolvimento Curricular, titulada A Vez e a Voz da Escrita,  da autora  Conceição Antunes Aleixo. Não a conheço pessoalmente, mas faço este exercício aproveitando em primeiro lugar o que na contracapa da obra vem expresso. Nela se lê:

“O desafio maior que se apresenta à Escola consiste na criação de ambientes de aprendizagem que, acolhendo a diferença, fomentam a equidade. Na conceção desses ambientes de aprendizagem destacam-se: a utilização do tempo escolar, a qualidade de ensino, os conteúdos curriculares e o incentivo às práticas de grupo que facilitem a intervenção mediadora do professor e a cooperação entre os companheiros de turma”

Bem, para ser coerente com o que acima deixei escrito, a primeira coisa que fiz, e que aqui quero dar conta, foi ver em que medida outros seres humanos já teriam passado por necessidades semelhantes, ou seja, formar cidadãos conscientes com base no acolhimento da diferença, na procura da equidade, capazes de cooperar em grupo, sentindo a necessidade de ter alguém que exercesse a função de mestre e, a limite, construir contextos a que chamassem escola para que aí  pudessem usufruir do ambiente indispensável à criação das competências que todas estas práticas iriam permitir.

Lembrei-me então de voltar a compulsar uma obra a que recorro com frequência, escrita há já algum tempo por Werner Jaeger, publicada em Portugal pela Editorial Aster, titulada PAIDEIA – A Formação do Homem Grego, e la fui eu ver até que ponto estas atuais necessidades não teriam já sido sentidas outrora.

Como conheço bem a obra não perdi muito tempo a encontrar o sítio onde na mesma se fala do “ideal humano da polis” e em extensão das questões da relação entre o “Estado e a educação”. É nas páginas 312 e 313 que estes dois temas são tratados pelo autor. Na primeira das páginas é escrito o que passo a citar:

“A nova sociedade civil e urbana tinha uma grande desvantagem em relação à aristocracia, porque, embora possuísse um ideal de Homem e de cidadão e o julgasse, em princípio, muito superior ao da nobreza, carecia dum sistema consciente de educação para atingir aquele ideal”.

Na segunda das duas páginas referidas é então aduzida mais uma ideia que também não quero deixar de citar:

“O Estado do séc. V é assim o ponto de partida histórico necessário do grande movimento educativo que imprime o carácter a este século e ao seguinte, e no qual tem origem a ideia ocidental de Cultura. Como os Gregos a viram, é integralmente político-pedagógica.”.

Bem, a razão de ser das duas escolhas dos aurores anteriores tem a ver com o facto de pensar que a procura que hoje fazemos para encontrar boas soluções para o ensino que deve ser ministrado aos cidadãos, tem muito de semelhante com necessidades há muito sentidas por outros que por aqui andaram e que, no essencial, se fundam na mesma matriz de valores que agora tantos dizem estar em causa.

Então, façamos um juízo final: provavelmente será sempre bom olhar um pouco para o passado, não para ao mesmo ficarmos presos, mas para dele colhermos alguns ensinamentos quanto à forma como por aqui andaram outros humanos antes de nós, pisando talvez as mesmas pedras que agora constituem as nossas ruas.

Despeço-me com amizade, até à próxima semana.

Luís Barbosa*

*Investigador em psicologia e ciências da educação
SALPICOS DE CULTURA, uma parceria com a Associação Internacional de Estudos Sobre a Mente e o Pensamento (AIEMP)

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