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CRÓNICA: «Ser humano, conhecendo o Homem» por Luís Barbosa

4/11/2020 às 10:00

SALPICOS DE CULTURA...

Ser humano, conhecendo o Homem

 

Confesso que no momento atual aceito que se cumpram normas que procurem travar a influência negativa da pandemia que se instalou, e também compreendo que o confinamento a que muitos de nós está a ser obrigado cause grandes constrangimentos. De resto, mesmo que me quisesse exibir como pessoa imune às dificuldades atuais, duas últimas experiências ter-me-iam chamado à realidade.

Uma aconteceu quando, em Lisboa, tive necessidade de entrar num hospital e percebi que franquear aquela instituição, permanecer dentro dela, e sair mais tarde, impunha-me o cumprimento de regras apertadas. Outra, deu-se quando soube que pessoa amiga estava doente e lhe telefonei para saber do seu estado de saúde. Esta, deu-me a notícia que felizmente estava a melhorar, mas, contudo, no decurso da conversa lá me foi dizendo que tinha preferido ser consultada em casa por um médico, já que várias pessoas lhe tinham dado por conselho não ir a hospitais, não fosse o diabo tecê-las, uma vez que a sua eventual deslocação lhe poderia acarretar prejuízos acrescidos.

Bem, penso que as experiências que acima deixo expressas são hoje comuns a muitas das pessoas que me rodeiam, e começo a ter mesmo a convicção que em nada se podem considerar anormais. Contudo, passados alguns dias em que sobre as mesmas fui pensando, comecei a formular a questão de que alguma coisa se apresentava no meu espírito de forma pouco clara. Quando mais novo, mas já ligado à ciência, fui daqueles que durante muito tempo construi a ideia de que o progresso era de tal forma grande, que a vida da humanidade só tinha um caminho, seguir em frente e aceitar que muitas das formas de viver no passado estavam definitivamente postas de lado. Porém, devo dizer que foi mesmo por ter continuado a trabalhar com o conhecimento científico, que fui reformulando esta minha convicção. Hoje, embora aceite que sem ciência estaríamos muito pior, já não tenho a ideia que só o saber dito científico pode ser o único companheiro do homem.

Há dias, quando estava cogitando sobre este duplo cenário, lembrei-me de voltar a ler uma obra que, enquanto iniciado nas coisas dos estudos académicos, me tinha deixado um tanto ou quanto constrangido. Não porque não tivesse gostado de ler a referida obra, mas porque, ao tempo, o seu autor pareceu-me derrotista. Porquê? Porque justamente apresentava nos seus argumentos algo que contrariava a minha necessidade de acreditar piamente na ciência.

O autor, Alexis Carrel, era na altura, lá por volta de 1950, não só bem conhecido, como muito lido, e a sua obra “O Homem – Esse Desconhecido”, publicada pela Editora Educação Nacional, trazia a chancela de “best seller”. Contudo, nesse tempo em que tudo era para mim belo e bonito, algumas opiniões expressas pelo autor fizeram com que não lesse o livro com a tonalidade com que mais tarde vim a fazê-lo. Vou aqui citar duas das passagens que mais me chocaram nesse momento:

No fim de contas, ignoramos se o aumento da estatura numa dada raça será, em vez de progresso, como hoje supomos, uma degenerescência. Sem dúvida que as crianças são mais felizes nas escolas em que foi suprimida a violência, o constrangimento, em que não fazem senão o que lhes interessar, e em que não se lhes pede tensão de espírito e atenção voluntária.” (pág. 36)

E continuando afirma:

Quais são os resultados de uma tal educação? Na civilização moderna, o indivíduo caracteriza-se por uma atividade bastante grande, toda ela orientada para o lado prático da vida, contudo por muita ignorância, por uma certa astúcia, e por um estado de profunda fraqueza, torna-se profundamente sensível à influência do meio em que se encontra.” (pág.36)

Bem, nunca estive nem estou com o autor no que respeita às coisas da educação das crianças, e da forma generalizada como ele pensava que a Escola funcionava. Porem, já no que respeita ao salve-se quem puder, e ao “chico espertismo” que a segunda citação destapa, aí, concordando em muito com Alexis Carrel, julgo até que muitas das dificuldades atuais em se lutar contra uma pandemia que se desconhece, têm de facto a ver com uma forma de estar social que se foi afastando daquilo que a natureza humana necessita para estar no mundo de forma equilibrada.

Por hoje fico por aqui, não sem deixar a ideia de que, com alguma sabedoria, também as dificuldades do momento hão-de ser ultrapassadas. 

Despeço-me com amizade,
Luís Barbosa*


*Investigador em psicologia e ciências da educação
SALPICOS DE CULTURA, uma parceria com a Associação Internacional de Estudos Sobre a Mente e o Pensamento (AIEMP)

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