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Reportagem | Vegetarianismo e veganismo: Meter a carne à borda do prato pela causa animal

8/11/2019 às 00:00
Pratos vegetarianos e vegan e doces vegan (Fotografias de Paula Val e Carolina Ferreira)

São pessoas diferentes que partilham valores semelhantes. São pais, filhos, estudantes, trabalhadores. Aquilo que os levou a mudar foi a luta contra a exploração e sofrimento por que passam os animais até chegarem ao prato.

 

Mais do que uma moda, é um regime alimentar e até um estilo de vida. Seja por razões étnicas, ambientais ou até religiosas, desde os mais jovens aos mais adultos, de mulheres a homens, na última década quadruplicou o número de portugueses que decidiu adotar um regime alimentar de base vegetal, deixando a carne e o peixe à ‘borda do prato’.

“Comecei a sentir-me muito mal comigo própria. Com toda a informação a que temos acesso começou a pesar-me na consciência cada vez que comia carne porque pensava que estava a comer um animal inocente e imaginava-o vivo e a ser morto para aquilo”.

Esta é a experiência de Sara Coutinho. Tem 21 anos, decidiu tornar-se vegetariana em abril deste ano e admite com convicção que “é para o resto da vida”. Conta-nos que se sentia “hipócrita porque quando estava em contacto com os animais achava-os queridos e depois comia-os à refeição. Não faz sentido, era como estar a comer gato ou cão. Deixou de ter diferença para mim”.

Sara é de Abrantes e admite que é “um ato de coragem mudar a alimentação numa sociedade como a nossa”. Para ela, ser vegetariana é ser “preocupada com o planeta e com os animais e isso é essencial para assegurar um futuro”.

Explica que foi o contacto com as redes sociais e com a informação disponível na Internet que a incentivou a “mudar o mais rápido possível”. Não toca em carne deste então, e o peixe, apesar de comer pouco, tem sido o maior obstáculo porque, sendo estudante, “as latas de atum são um salva vidas nas nossas refeições”.

E se há quem se estreie nesta dieta, há também quem já seja veterano. É o exemplo de Pedro Freire, que desde 2015, ao “ganhar consciência sobre a forma como os produtos de origem animal são produzidos e quão mal fazem ao ambiente” e ao se aperceber de “como a indústria da carne é por dentro” decidiu fazer uma mudança “completamente da noite para o dia”.

Aos 19 anos, Pedro admite que “desistir nunca foi uma opção. Não faz sentido haver vontade de desistir de algo que salva milhares de vidas diariamente”. E acrescenta: “é impossível alguém ver a realidade da indústria da carne e não se sentir culpado por estar a contribuir para tal. Boicotá-la é a única solução para acabar com tais níveis absurdos de poluição”.

Com ideias bem definidas, Pedro considera que “ser vegetariano é lutar contra todo o tipo de preconceito e hipocrisia referente ao especismo” e “ter consciência de que há algo de errado com a norma da alimentação humana”.

No entanto, não nega que antes de se interessar pelo assunto “defendia o consumo de carne cegamente e sem qualquer tipo de opinião informada”.

Tal como Sara, Pedro partilha da ideia de que a falta de opções vegetarianas em restaurantes é algo que “felizmente está a mudar de forma notável” em cidades do interior do país como Abrantes.

E desde ao bacalhau à brás ao cozido à portuguesa, da caldeirada ao queijo e até ao pastel de nata, a criatividade é a chave para reformular pratos e encontrar diversas alternativas à proteína animal.

No caso de Léa Rodrigues, há 15 anos que experimenta alternativas mas foi em janeiro que decidiu erradicar o consumo de carne e peixe, já com um objetivo maior em mente.

Influenciada pelos pais que “desde sempre” fizeram refeições vegetarianas, passa o testemunho à filha de 4 anos, a qual “tem a hipótese de ser vegetariana em casa e faz a mesma alimentação do que eu”, e que na escola “faz a alimentação que os outros meninos fazem”.

Foi depois de “ver vários documentários” que Léa se começou a aperceber de que é “uma tortura aquilo que fazem aos animais. Chocou-me de uma tal maneira que de cada vez que comia carne aquilo enojava-me. Tinha sempre aquelas imagens de tortura na minha cabeça e então decidi ‘não, isto acabou’ ”.

Apesar de achar que “devagarinho as pessoas estão a começar a ter outra sensibilização”, admite que o mais difícil para si tem sido “explicar às pessoas”.

“Muitas pessoas não entendem o porquê: eu faço pela minha saúde, pelos animais e pelo planeta. Mas, principalmente, pelos animais. E é essa parte que a maioria não entende. Mas as pessoas às vezes gostam muito de comer carne e não querem saber do resto”, conta-nos.

Léa admite que tem percorrido o caminho sem recurso a ajuda profissional. Acredita que a pesquisa exaustiva que fez é suficiente. “Fui hoje à minha médica de família mostrar as análises e estou ótima de saúde”, revela.

Em termos de alimentos, considera haver hoje “muita opção para colmatar as deficiências de proteínas, que é que o basta”, nomeadamente nos supermercados onde há “cada vez mais produtos para fazer a substituição”. Por outro lado, ir jantar fora é “complicado”, sobretudo na zona onde reside, em Sardoal, por falta de opções vegetarianas. 

A pensar no “bem-estar físico e psicológico”, aos 36 anos o objetivo de Léa é tornar-se vegan. Para isso, tem adotado atitudes simples como o “não comprar botas de pele de origem animal e não comprar champôs e cremes que foram testados em laboratório com animais”.

Mais do que um regime alimentar, ser vegan representa “um estilo de vida”. Isto é, além de a alimentação assentar no vegetarianismo, o veganismo vai mais além e prende-se com preocupações a nível de entretenimento usando animais, vestuário feito a partir de animais e produtos usuais que são testados em animais.

Uma filosofia de vida que Tiago Santos segue “há cerca de 3 anos”.

“Foi mais por uma questão de proteção animal, de evitar o sofrimento e a morte do animal”, conta.

Habituado a conviver com animais desde criança, foi em “conversas com alguns amigos que partilhavam a mesma ideia” que despertou a vontade de pesquisar como é que podia colmatar a ausência de proteína animal e acabou por “dar o passo”.

Estabeleceu uma data e um mês antes da mudança foi testando “com uma ou outra receita” até que chegou ao dia e “cortei em absoluto. Foi logo radical, cortei tudo ao mesmo tempo”.

Após uma consulta de nutrição para “confirmar se estava a fazer as coisas bem-feitas”, foi prosseguindo com o objetivo e hoje admite que consegue “totalmente escapar à tentação”.

Além da sua ocupação principal, Tiago é também personal trainer e instrutor de ginásio. Pratica ainda futebol, musculação e muay thai e revela ser a prova viva de que “uma dieta sem qualquer tipo de proteína animal nunca foi impeditiva de atingir resultados”.

Para além do obstáculo da falta de produtos no comércio local e de opções nos restaurantes, Tiago aponta a dificuldade em conseguir adotar um estilo de vida vegan em regiões como aquela onde vive, Vila de Rei, em que os produtos de origem animal “estão tão enraizados na sociedade que se torna complicado fugir”.

Algo tão simples como comprar um sabonete pode tornar-se “muito complicado” e envolver “uma pesquisa de informação muito grande”.

No entanto, tal como Sara, Pedro e Léa, a vontade de lutar contra a exploração animal e a esperança num futuro mais promissor são a alavanca que o move e que faz com que estas dietas alimentares venham a ganhar expressão num país onde a carne e o peixe ainda marcam forte presença à mesa.

 

Portugal ainda é um país de carne e peixe

Portugal é ainda um país onde o bife está no prato e o peixe na travessa. Do porco à vaca, da galinha ao peru, sem esquecer os peixes, a cada hora são mortos milhares de animais que hão de chegar ao prato de milhões de portugueses.

Direção Geral de Alimentação e Veterinária divulgou que em Portugal o ano passado foram mortos quase 257 milhões de mamíferos e aves.

A cada dia, quase 1 milhão de aves são mortas para consumo humano. Número ao qual se juntam 871.000 galinhas, 17.000 porcos, 16.000 patos e quase 14.000 perus mortos por dia.

Além destes números, Portugal é ainda o maior consumidor de peixe da União Europeia.

Dados do INE mostram que em 2018 foram cerca de 129 as toneladas de peixe retirados do seu habitat para consumo: 107 toneladas são de peixes marinhos (cavala – 50% das capturas, seguido do carapau e da sardinha).

 

Uma realidade a ganhar força

A tendência para dietas com base vegetal tem vindo a ganhar força. Prova disso são os atuais cerca de 120.000 portugueses que já adotaram um regime alimentar vegetariano – o equivalente a 1,2% da população portuguesa (dados de 2017 que contrastam com os 0,3% de 2007).

Um estudo recente do Centro Vegetariano português dá conta de que são as mulheres e os jovens entre os 25 e 34 anos aqueles que mais adotam este tipo de regime alimentar.

Mais pequena é ainda comunidade vegana: 0,6% da população portuguesa faz parte deste estilo de vida – valor que duplicou de 2007 para 2017.

 

Afinal, qual o impacto na saúde?

Eliminando os produtos de origem animal, é necessário encontrar soluções para colmatar a falta de nutrientes como a proteína, o cálcio e o ferro. Entre elas encontram-se processados como o seitan – feito a partir do glúten de trigo – ou o tofu – feito a partir do grão de soja.

Mas não só. A nutricionista Célia Lopes explica que ser vegetariano “não é só comer legumes. Têm que ter uma alimentação rica em fruta, vegetais, cereais, leguminosas, frutas oleaginosas [frutos secos], porque se não tiverem toda esta variedade a alimentação vai ser deficiente”.

Apesar de salientar que “ser vegetariano não é uma solução mágica para todo o tipo de problemas a nível de saúde”, reconhece que existem múltiplos benefícios “nomeadamente na redução do risco de doenças cardiovasculares, obesidade, diabetes, hipertensão, certos tipos de cancros”, havendo mesmo uma “ligação com um possível aumento da longevidade”.

Como principal senão deste regime, a nutricionista destaca o aparecimento de fast food no vegetarianismo, com uma elevada “quantidade de gordura nos alimentos”.

Defende também a importância do aconselhamento profissional, no sentido de “não faltar nada nutricionalmente”. Posição que é também defendida pela nutricionista Mariana Torres que esclarece que é “perigoso” iniciar um novo estilo alimentar autonomamente, uma vez que “todos nós tivemos uma história alimentar e ao estar, do nada, a mudar para uma corrente destas, pode estar-se a intensificar a carência de alguma vitamina”.

Mariana Torres explica que no caso dos bebés é possível iniciar uma alimentação baseada numa corrente vegetariana/vegan, uma vez que “um bebé é uma tábua rasa, não tem história alimentar”.

No entanto, na visão desta nutricionista, é “um mito” afirmar que existem benefícios em termos de saúde em adotar uma dieta vegetariana. Mariana Torres defende que “no pano de fundo da alimentação saudável está sempre a dieta mediterrânica, que não restringe a carne nem o peixe. Quer-se de tudo, com uma calibração muito bem-feita”.

Apesar de afirmar que é possível colmatar a necessidade de nutrientes sem consumir alimentos de origem animal, a nutricionista refere que é necessária mais quantidade para cumprir os requisitos: a título de exemplo, para se conseguir igualar os nutrientes que um ovo dá é necessário consumir uma “quantidade elevada de frutos secos”.

 

Opções vegetarianas e vegans na região

Um pouco pela região começam já a aparecer nos menus dos restaurantes opções sem proteína animal.

No entanto, se ir a um restaurante sem pratos vegetarianos/vegans pode ser uma dor de cabeça para uns, ir a um restaurante sem opções de carne ou peixe é um problema para outros.

A prova de que é possível conjugar os dois regimes alimentares está, por exemplo, no espaço Val – Casa de Comeres.

Inaugurado em agosto deste ano, a proprietária, Paula Val, revela que a adesão “tem sido boa, as pessoas vêm e ficam clientes, o que é bom” e que o chamariz desta casa se prende com o facto de oferecer “o mesmo prato, a mesma raiz, e divergir na proteína, sem fundamentalismos”.

Entre o “hambúrguer e a salsicha da Beyond”, produtos americanos cuja casa de comeres é provavelmente “o único restaurante num raio de muitos quilómetros que tem estes produtos disponíveis”, os novos clientes vêm “essencialmente à procura de coisas diferentes”.

Do caril de grão com tofu à feijoada vegetariana, passando pelo tofu à Zé do Pipo e pelos burritos vegan, Paula explica que “tudo o que se possa imaginar que se possa fazer com carne ou peixe pode-se fazer com seitan, tofu ou vegetais” e que é possível fazer “pratos bonitos e muito nutritivos” e com um bónus: “dou primazia aos produtores locais, com pequenas hortas”.

E como as possibilidades são infinitas, as sobremesas não ficam de fora: das veganas de Berlim aos vegassants de chocolate, sem esquecer o arroz doce vegan, o difícil é escolher qual experimentar primeiro.

 

Reportagem: Ana Rita Cristóvão

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